a coluna inteira cravejada de gavetas, desejando escadas na cabeça… e frasquinhos de vidro com gotas lindas de sangue. lindas mesmo, quase pretas.
pedaços de pele roubados, sob as unhas. escrever histórias em pedaços de pele que ficaram guardados secos por tanto tempo e pensar absurdos, parecendo estar cuidando de mortos.
na mesa, casas e casas de passarinhos, sem ter nenhum passarinho. nem querer ter, já que nenhum deles viveria numa casa tão branca e tão longe de ser uma casa de passarinho…
cantar em voz alta, de olhos fechados, sentada no canto silencioso da sala da casa que terei um dia. de frente para a janela que poderia ser um resumo de todas as janelas pelas quais já me apaixonei.
engraçado como poucas coisas me sustentam tão bem como espaços vazios, mesas brancas e sombras postas bem diante dos olhos.

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de tanto acreditar que era fraca, ela não se entendeu. pálida de arrancar gemidos, vendo todo aquele sangue claro no asfalto preto de uma noite preta, formando quase uma cena dos livros que ela carrega na costas para sempre ter onde morar, ela desaprendeu a chorar. por pouco não foi detida por isso. e vendo a tal pessoa que a viu não morrendo, ela desaprendeu a fugir. talvez só por alguns instantes, mas ela firmou bem os pés no chão, e parece querer realidades. meio boba a situação e o cheiro de coisas antigas e a palpitação nos olhos quando os dois se vêem, mas bonito ela não querer morrer com todos os sentimentos na ponta da língua e o peito tão vazio.

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o mais correto que ela faria seria não se apaixonar. seria, no mínimo, não se apaixonar pelo mesmo homem mais de seis vezes. todo mundo sabe disso. no mínimo aprender a esquecer uma coisa que então cederá lugar a outra que cederá lugar a outra que cederá. mas ela acredita que no seu peitinho miúdo e infantil ela pode carregar o mundo. e assim segue, de costas curvadas, achando bonito tanto sentimento, achando bonito e sorrindo de amores fúteis, orgulhosa de pedregulhos no lugar de sangue.
não tem explicação uma menina daquele tamanho, tão inchada, tão débil, com a pulsação tão fraca por causa dos malditos pedregulhos. não precisaria nem de muito sangue; coisa de uma ou duas gotas e sua pele seria mais real (porque uma menina dura, branca e curvada não consegue ser real, ainda que seja doce).
todos os dias ela se propõe a aprender a viver. todos os dias
…e repousa sobre o travesseiro a mesma cabeça, com as mesmas flores, os mesmos insetos.

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depois que desacostuma, é dureza voltar!
mas pode deixar, mary, vou tentando…

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é em horários críticos que ela gosta de ser inútil e coisas se acumulando, pilhas, filas, montes, colocam um sorrisinho quase estúpido em sua boca torta. porque nunca se sabe o que virá depois. porque o que realmente importa é aquilo que já foi feito ou que está aqui dentro ou que já deixou uma sementinha em seus dias de outras coisas melhores para fazer.
quase não dá para entender o que rege essa menina deitada entre um sonho e outro. dá quase vontade de gritar para fazê-la viver de verdade. porque é um desperdício funcionar só minutos antes das coisas acontecerem. parece pecado.
mas o sorriso deitado, a fila de desejos nos olhos, a colcha amarela e o peito revolvidos formam uma cena bonita de se ver.

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foi quando ela realmente tentou desamar uma pessoa pela primeira vez.
… ao perceber que cometeria fatos reais se se deixasse levar por ele. que viveria mesmo. que tomaria providências. que hemorragias deixariam de ser internas. que hemorragias deixariam de ser. e ela seria cada vez mais vermelha por não sangrar nunca. e deixaria de parecer fraca, de ficar pálida, de ser perecível. deixariam de existir os dias mais longos da semana, as semanas mais incertas do mês. não haveria mais mortes temporárias porque ela teria que se apresentar à sua própria vida.
criaria begônias em vez de musgos. logo ela, que era úmida.
sim, seria o fim de seus olhos opacos. ela, que gostava de ter olhos opacos. fim de ser outra pessoa no espelho a certa hora da sua madrugada. fim de beijar palavras e chorar paredes.
ela teria, mais que tudo, que reestruturar sentenças: não chover, não ventar. abandonar os sujeitos impossíveis, os objetos inexistentes. não sofrer de céu sem cor.
ser específica e não ensaiar sobre as coisas que se rompem facilmente, coisas que seriam chão, coisas que nunca se tocaram. não enxergar azul nada que não seja azul.
bobagens, bobagens e ela teria que desinventar sua gramática. e seria muda por um tempo. pra depois ser ordinária.

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treme um tremor antigo de esquecimento
sua voz não corresponde ao seu nome e, sentindo a realidade fincá-la, se exaspera e emudece. era essa a sua vingança.

nada disso seria seu se houvesse preferido se salvar. em algum momento foi lhe dada essa opção. mas agoras são desvios unânimes e consecutivos. palavras que não validarão desgraças por um triz.

ela desiludia ensaios. sabendo ter sempre uma pessoa a menos à sua espera.

mas nada a impediria de errar por muito mais tempo. ou de acumular despropósitos irreversíveis.

se era assim que a vida se lhe apresentou, era assim que talvez ela.

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e naquele mesmo momento um piano florescia em seus anos de vida. um piano abafado ainda. só com os acordes mais melancólicos.

mas, no frio da sua noite, uma nota cinza era uma benção e a menina esquecida sorria de tempo. a menina se enchia de sons e fumaça. comia estrelas secas com seus desejos de. a menina ventava. o céu deserto desfalecendo em seu nariz. dedos noturnos. a mão. retalhos nas mãos.

renascia nela mesma, ela. cada vez mais lilás e porosa. cada vez mais acidentada. com mapas secretos no verso dos dentes.

ela habitava passagens porque ali teria desculpas. na sua desrazão, chorando parecia sorrir, já que todos os extremos de todos os seus caminhos possíveis eram pontos coincidentes.

a vozes largas, cedendo às evidências, sempre a um segundo do resto de sua vida.

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memórias de muro sem cor ou de sonhos improváveis que foram se acumulando em brônquios, bronquíolos. alguns até em arterias – sei porque consigo tocar quando o peito retrai – e outros que já se espalharam como tumores, com a rapidez que se espalham as coisas malignas e sem volta.

dificil é ter o ar todo ao redor, todo ele, e não ter pulmões.

eu tentaria outros gestos, outros corpos se não fosse quase sempre inútil tentar. tentaria ter outra morte, mais antiga e real que essa. tentaria desacordos com deuses sombrios.

mas tudo isso seria inútil porque a cama seria sempre a mesma e todos os caminhos dariam num mesmo lugar que poderia ser outro se visto com olhos nus mas, a essa altura do desespero, sete véus já encobrem as córneas.

é pouco provável que os relógios saibam horas nesse lugar. qualquer quebra de silêncio é pouco provável. e fica a iminência, por pura devoção ao terror.

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olhar para o silêncio.
coisas que tornam o vazio visível.
um aperto. aperto mesmo, no peito. desses que só são possíveis quando não se tem o lado de dentro.
nada de vazios existenciais ou dores de solidão ou, enfim. um vazio físico, de falta de órgãos.
a respiração que não se altera nunca, docemente atada a uma eternidade insuficiente e desnecessária, porque não há movimento ou fatos dentro do corpo. o sangue congelado, suspenso em um organismo inexistente. o labirinto vermelho, quase preto, flutuante entre a pele e a pele.
é difícil não ter coração batendo, assim, de uma hora para a outra. não ter nada funcionando secretamente na parte que seria ainda o mundo se não fosse tão doentemente sua.
agora sou proprietária de pele, um labirinto e um abismo.

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