foi num dia roxo e demorado que ele se despediu pela terceira vez. abraçou-me pressionando a ponta dos dedos cruelmente contra o meu braço, querendo me atingir por dentro, querendo me machucar.

e foi num dia azul e qualquer que ele se despediu pela quinta vez. dessa vez não me tocou – a não ser com palavras. eu, que não consegui vê-lo arrumar as malas, fugi. tive medo de essa ser mesmo a melhor coisa a se fazer.

o nó se desfez mais uma vez. agora é como se tudo não houvesse sido.
mas os estragos sempre permanecem no subterrâneo esperando a hora de.

Publicado em palavras . Deixar um comentário

ilimites – parte II

não sou infeliz.
não sou feliz, não sou seca e nunca morri em combate (embora já tenha morrido sem lutar algumas vezes).
nunca quebrei a perna nem nunca tive filhos.
nunca li dom quixote.
nunca fui de dormir cedo.
não gosto de todas as pessoas. não gosto de um barulho alto no meio do silêncio. não tenho religião.
não acredito na realidade. não viajo mais com muita frequência. há muito tempo não vejo o mar.
não gosto de letras maiúsculas porque dão a impressão de se estar gritando. não gosto de gritos.
não sou cruel o tempo todo. não sou frágil.
não tenho nenhuma doença grave, não tenho mais amigos do que preciso, não sou muito paciente. não gosto de falar em público.
não consigo manter a casa sempre em ordem e não sou objetiva na maioria das vezes.
não revelo segredos alheios.
não tenho boa memória por isso anoto tudo aquilo que não esqueço de anotar.
não faço as unhas com frequência e não me lembro dos meus sonhos há muito tempo.
não sei mais dançar.
não aguentei ver quem eu amo ir embora e fugi.
nunca guardo todas as mágoas, nunca aprendi a não chorar.
não sou eterna, não sou antiga.
não gosto de morrer.

Publicado em palavras . Deixar um comentário

ilimites – parte I

duvido de deus mas às vezes tento rezar. não acredito em pessoas que não mentem ou em prazeres maiores que a dor. não sinto a dor dos outros. todas as grandes perdas da minha vida ainda estão por vir.
ser me acontece. não é algo que eu saiba fazer.
quando choro muito, fico sem enxergar, ainda que preferisse ficar sem ouvir. sou desértica.
acredito em ornitorrincos. acredito que tudo que existe, existe no presente. acredito que tudo que acontece, acontece em mim. acredito em palavras, apesar de.
gosto de livros e gosto de abajures. prefiro luzes amareladas… gosto de inventar palavras.
às vezes minto que estou gripada ou finjo que estou bocejando quando, na verdade, estive chorando.
queria ser cientista. não sou muito simpática quando sou falsa. alguns dias tenho medo de escuro. descobri que gosto de dormir abraçada. leio histórias infantis. sou inconstante. deixo os móveis ficarem empoeirados. em certas épocas, deixo a maioria de minhas plantas morrerem e depois coleciono vasos de plantas mortas.
a princípio, não gosto de estranhos. nunca gosto de intrusos. minha letra muda sempre e talvez eu morra quando eu já tiver tido todas. tenho mania de fazer listas.
penso em ter filhos mas acho melhor não.
escrevo antes de dormir. penso em coisas só pra que elas não aconteçam. sei que existem coisas difíceis de se dizer. acredito em coisas subterrâneas. acho inútil chorar em dias de chuva.
acredito que o amor seja uma desilusão da própria idéia que se faz do amor. li isso em algum livro que já esqueci. sou aérea. tenho sempre quase tudo.
fumo muito porque fumar me acompanha. gosto de ser específica. tenho muitos livros, inclusive alguns que nunca li e que sei que nunca vou ler. gosto de colecionar. sinto saudades. morrer me assusta.

Publicado em palavras . Deixar um comentário

a história incompleta de Maria Lúcia

Maria Lúcia sabia matar mosquinhas com os pés.
Nunca lhe haviam dito que este era um dom mas era assim que ela o entendia. Além, é claro, de ser uma missão… Tantas maneiras inteiras de morrer… os pés da menina macia eram uma benção.
Maria Lúcia colecionava mosquinhas mortas. Cada uma que caía era recolhida e colada atrás da cabeceira de sua cama porque ela acreditava que sim. Quando a noite escurecia seu quarto, Maria acreditava em muitas outras coisas também.
Acima de cada inseto, ela escrevia o nome, a idade e dia da morte. O dia ela sabia, a idade ela inventava mas o nome, nome não se inventa, ela dizia. O nome se espera.

Publicado em palavras . Deixar um comentário

como se não ouvisse o lampejo das libélulas que ao seu redor haviam construído um véu, como se fosse realmente a filha perfeita de uma palavra inventada – que só a ela lhe fora revelada uma única vez, para nunca mais – Helena sorria com olhos oblíquos e, ao pé do ouvido, soletrava todos os nomes que ainda não haviam sido possuídos por ninguém, por nenhuma imagem, até aquele momento. era assim que passava as tardes…
e em tardes sem lua ela se abandonava e sua presença no mundo era uma delicadeza sem fim. suas asas precoces e implícitas, seus desejos de.
Helena doía.
ela era o rascunho esquecido de todos os livros.
arrancava plantinhas que nascem no muro só para lamber suas raízes…

Helena conhecia melhor que ninguém tudo aquilo que não existia.

Publicado em palavras . Deixar um comentário

uma coisa que nunca deveria ter acontecido, ele ter parado minhas lágrimas com os dedos.
ajoelhado, desencaminhando lágrimas. ele que é reinventado e eu sei. mas que é tão real quanto é cruel. e tão sincero que me dói saber que os seus pedidos agora tenham de ser turvos. uma boca que é um continente de palavras desconhecidas e que, juro, viveriam bem em mim.
ele, que inventa escudos e que me tem nas mãos e que me cristaliza, ainda que há tempos não me veja realmente.
enquanto eu beijo outro nome de mulher na nuca de um anjo toda noite, penso então que talvez seja isso: seja mesmo um grande desvio.
uma madrugada tão preta quanto outras e eu não quero que ninguém me toque assim nunca porque tenho um paraíso inatingível sob a pele e é tudo o que tenho.

Publicado em palavras . Deixar um comentário

uma coisa concreta em fragmentos – desabafo

estar cultivando, não sem resistência, mas estar cultivando uma pequena vida em comum. ter superado o episódio da escova-de-dentes e achar que agora a escova-de-dentes dele combina com a minha, e que as duas na xícara contam uma história bonita, sem ser feliz nem ser triste, de uma mulher seca que foi abandonada por um eremita. depois de despedir uma despedida tão improvável, um dos olhos da mulher ficou oco para sempre; um de seus pés ainda reluta em unir esforços com o outro e uma de suas mãos nunca mais se abriu.
ele me ensinar coisas eternas antes de dormir, sabendo que eu sou etérea, e não saber sussurrar e ter músicas preferidas saindo por debaixo da cama, talvez brotando do chão do quarto, e ter a cabeça dele sobre o meu peito, pensando sussurrar coisas inúteis, e não saber qual coração está batendo em quem. e ter um cigarro na hora certa e um beijo na testa e eu tenho aprendido a caber em metade da cama mesmo sabendo que eu teria a cama inteira se assim eu quisesse.
que tudo vem de desejos e escolhas. e que isso é tão amplo que não trará certezas nenhuma para a vida de ninguém, mas que dá uma sensaçãozinha boa de ter tudo sob controle.
dormir com o braço dele aureolando minha cabeca como se me abençoasse sem me tocar, para não interferir nos meus sonhos nem nas minhas doenças.
alguém que repete exatamente as frases mais cruéis da música quando imagina sussurar na minha orelha: hold me like you’d never let me go. sabendo que eu sou trêmula e sem saber que sou eu quem precisa do abraço, porque eu parto, porque é da minha natureza partir.

a companhia dele em silêncio é rara mas é uma carícia. uma carícia necessária.

Publicado em palavras . Deixar um comentário

uma coisa abstrata

dar beijinhos ardidos de impossibilidade no ombro de uma pessoa tão amada e tão não minha. e pedir socorro para algum deus porque eu lembro que alguém supostamente me ouvia pedir. rezar de joelhos, para resgatar o tempo em que eu acreditava. as mãos postas em oração. as mãos, as mesmas mãos, que não aprendem e às quais todo o pecado é inerente e doce e silencioso.
é difícil saber, não sendo ele, o que ele quer. difícil vivermos de omissões. mas se não fosse assim, não seriamos nós. e é só na ausência dele que eu o possuo.

Publicado em palavras . Deixar um comentário

dormir na cama que ele arrumou. ele, que cuida dos meus sonhos. ele, que afofou seu travesseiro mesmo sabendo que poderia não voltar a dormir lá nunca mais porque a sua mulher perdeu o rumo.
o lençol com a dobra que eu faria, a mesma xícara de café, a mesma temperatura.
ser intransitável é uma maldição. e me dói escrever isso porque tenho medo de certas palavras. e, ainda assim, digo que é uma maldição.
só saber amar de longe, eu, que deveria ser tão exclusivamente sua… e nunca deixei de ser impossível.

Publicado em palavras . Deixar um comentário

coisas que vieram à cabeca enquanto eu não dormia

a hora do relógio ser vermelha é um desespero desnecessário. não custaria nada ser azul.
olhos cor de tacos desgastados. cor de mesa velha de madeira ao ar livre.
quase nada tem a cor da pele
poeira
cabeça de alfinete vermelha
pedrinhas brilhantes em rua de pedras
as dobras da parede
fumaça acumulada no teto ou nos olhos
uma gaveta de pequenas realidades incompletas
algodão
cicatrizes e coisas que não cicatrizam
uma vela que se assopra mas que nunca se apaga
um fio de cabelo na fronha de um travesseiro que não pertence mais a ninguém
falta de sono
desejos
gostar de desenhar palavras bem devagar, como rezar
nao saber rezar mas saber implorar
elefantes, umbigo, espinhos, vento
redemoinhos
gostar tanto de alguém a ponto de abraçar bem forte pra ver se as almas se confundem
beijos na boca
tentar se afastar e não conseguir. tentar fugir.
ser grega
entender ut pictura poiesis de madrugada
ajoelhar e rezar pro urso dos canos
fazer carinho
sentir prazer
coisas secretas

Publicado em palavras . Deixar um comentário