de uma leveza interminável, a mulher esguia e de cabelos pretos corria e dava piruetas no ar como se tudo fosse dela.
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de uma leveza interminável, a mulher esguia e de cabelos pretos corria e dava piruetas no ar como se tudo fosse dela.
de alguns momentos vazios nasce um desapego terrível com as coisas.
de tantos nãos, a vista ofusca um pouco e adormece opaca.
horas depois, as coisas retomam seus lugares, intransigentes.
a noite preta e sem estrelas, emoldurada por grades e por plantas sedentas, parece dizer nada. acordei com uma música ruim na cabeça e sabia que seria mais um dia.
canso de falar coisas e de ser negada o tempo todo. canso de me abrir e me fechar. por desesperança, me recolho a um universo miúdo que é meu refúgio e que me dá silêncio antes do amor. todos os dias algo se encolhe irreversivelmente e por dentro nasce um jardim estranho de brotos tortos e sementes sem chão. imagino uma paisagem baixa, infinita e sem cor, daquelas que se estendem até um lugar que já nem existe mais, com um cheiro doce e horrível de domingo e o som monótono do mundo girando lentamente. nenhum vento, nenhuma dor, nenhum desejo, nada.
sempre que os meus pés alcançam o dia e a claridade se renova em meu peito, acho quase todo sofrimento inútil. acho ilusória a profundidade das coisas. acho ridículas as pequenezas da vida. mas, à medida em que o mundo se retorce, alguma coisa realmente se transforma dentro do corpo e os pensamentos também escurecem e ficam sem estrelas.
a noite em mim me perturba o sono.
agora me enchi de lembranças desconexas da casa e da vida na casa e quis escrever uma antes de dormir…
eu era bem pequena e imaginei que podia voar, igual a mary poppins. para mim fazia todo sentido que se pudesse voar igual a mary poppins. enquanto eu amadurecia a idéia, resolvi compartilhá-la com meu irmão – pouca coisa mais velho que eu – que disse que sim, que se eu realmente quisesse, eu poderia. eu acreditei.
era um dia de bastante sol. lembro como se fosse um domingo mas pode ter sido qualquer outra tarde vazia. escolhi o maior guarda-chuva da casa, para poder voar por mais tempo. o guarda-chuva era velho e bem preto. não combinava muito com minha idéia bonita de voar mas, entre as opções, era a que me inspirava mais certeza. naquela hora, preferi a certeza às flores enormes e rosadas de um guarda-chuva pequeno, de cabo de madeira entalhado, com detalhes dourados e tudo . pensei que, dando certo, aquele seria o próximo.
calculei todas as coisas que podia. o vento, o impulso que tomaria, a distância segura que deveria manter do muro das vizinhas: duas senhoras muito simpáticas mas bastante idosas que talvez achassem um pouco inoportuna uma aterrisagem minha ali, na casa delas, daquela maneira.
era uma casa de três andares. subi até o terceiro, onde ficava o atelier da minha avó e um telhado onde eu gostava muito de passar as tardes. do telhado, eu calculei o vôo até o quintal do segundo andar, onde meu irmão me esperava, aflito e cruel.
analisei todas as possibilidades uma última vez e, então, lembro que segurei bem firme o guarda-chuva velho nas mãos pequenas e suadas, com medo de que, se houvesse uma falha no sistema, essa falha fosse minha. e foi a última coisa de que me lembro. não aconteceu nenhum milagre. me esborrachei no chão do quintal, ainda segurando o guarda-chuva preto, agora do avesso, com a armação torta, como uma aranha morta de barriga pra cima.
meu irmão não riu. correu pra me ajudar e acho que, bem no fundo, ele acreditou que talvez fosse mesmo possível. só não quis testar.
eu não quis reavaliar o plano. talvez tenha sido uma das primeiras impossibilidades que aceitei na vida. também não quebrei nada. nada físico. saí inteira por fora mas esmigalhada por dentro.
apesar de tudo, ainda guardo desse dia a sensação de estar planejando algo que, se der certo, poderá mudar sua vida inteira.
já que ando de poucas palavras, pensei em colocar algumas imagens…
são da casa em que vivi minha infância e que agora se parece com quase nada.
todas as imagens que guardei em mim, por todos esses anos, eram uma grande invenção da memória.
… o que talvez seja bom porque a casa de que me lembro era muito maior e mais escura. era praticamente assustadora e preta e silenciosa e tudo ecoava e os móveis se vestiam de uma poeira cinzenta e antiga, de cheiro de coisas antigas, e essas cores que vejo hoje e que existiram sempre, definitivamente não existiam em mim. lembro que tudo era imenso e distante. lembro do buraco que uma ponta de cigarro acesa deixou no sofá novo da sala. é essa a cor de que me lembro, o azul do estofado novinho do sofá da sala. logo o sofá providenciado para propiciar esquecimentos…
ao contrário do que parece, foi uma infância boa. tenho lembranças boas. foi a casa que se distorceu em mim sem que eu consiga dizer o motivo.
tem sempre umas épocas da vida em que a realidade das coisas se distancia tanto tanto tanto das palavras que fico mesmo um pouco sem fala. tem época que viver é uma ação quase desajeitada, em que me esforço como quem está aprendendo alguma coisa única, uma única vez, e não pode errar. sobra pouco fôlego pra qualquer outra coisa…
eu hoje ouvi uma história linda de um homem que se apaixonou perdidamente por uma mulher quando segurou o coração dela nas mãos.
ele – que nunca havia prestado atenção em seu olhar úmido ou em seus anseios desencontrados -, quando a viu por dentro e viu que o coração dela batia quente em suas mãos e era mais vermelho que todos os outros, mais necessário que todos os outros, se entregou de vez e naquele momento ele soube que a amava e que a amaria para o resto da vida.
eu o olhava e só conseguia pensar que ele era aquele que havia conhecido o amor insuportável e havia sobrevivido…
por trás do rosto nublado, ele parecia verdadeiramente feliz.
gestos minúsculos.
ela, insustentável, na janela aberta da sala, desfiava em voz alta a lista dos seus afazeres domésticos, de todas as lembranças dolorosas da vida, a das palavras preferidas, a das coisas mais bonitas do dia …
era da sua própria vida que ela vivia. se fazia algo, não era pelo momento da ação mas por todos os momentos posteriores em que reviveria essa ação. pelo prazer de acrescentar ao intricado jogo de instantes classificados mais uma peça incerta. porque era disso que vivia há anos, na janela, de olhos fechados e pálpebras trêmulas.
o mundo que era dela não era de mais ninguém. seu toque era raro e silencioso e seu funcionamento era secreto, embora estivesse sempre pronunciando as palavras que agitavam o seu lado de dentro.
na sala, um velho vitral desbotado refletia em seu corpo sombrio peças de um antigo quebra-cabeças, já desconexo e irrecuperável.
ele tem um clareza nos olhos que só as pessoas que aceitam a crueldade do mundo têm. passos firmes de quem não economiza as forças para os dias difíceis. ele me ensina coisas que eu nunca quis aprender e, por instantes, penso que a vida no mundo dele é menos leve e mais simples, e penso em me render até o fim e ir embora com ele e ir viver a vida dele, porque a minha é circular e me dá náuseas…
mas a dureza das coisas parece reconhecer os de coração acidentado, de ossos frágeis.
toda vez em que nos tocamos, meu amor passa pela percepção de abismos.
uma mulher que foi coroada para sempre a rainha dos lugares longínquos. todos aqueles que, de tão distantes, já nem existem mais. que o tempo engoliu.
a cidade estreita e deserta amanheceu florida com as flores mais extravagantes que eu já vi. o que era tudo cinza povoou-se de cores violentas. cada canto coberto por cuidados esquecidos e pedidos de perdão.
eu inventei juras de amor para desviar a tarde tensa mas elas ecoaram vazias.
nesse dia, quando me deitei, tive a impressão de não ser uma só. de ser estreita e deserta também. gasta, com os degraus quebrados e flores esdrúxulas secando ao sol.
uma menina repetia, desatenta, palavras de amores trágicos.
o céu escureceria de tanta dor que a menina proliferava sem saber. mas o céu continuava azul, os pés da menina continuavam a balançar no ar, sua voz continuava suave e inconsequente. o que era sombra continuou a ser sombra enquanto ela recitava a morte de todos os amores eternos.
por um instante pensei que esse seria o momento crucial e que, a partir de então, nada mais seria o mesmo. mas nada mudou.