… e ele me ensinou que desistir não era necessariamente recuar. que desistir era, muitas vezes, um ato de coragem, como deitar sobre um papel tão branco um primeiro eterno e irreversível traço negro. ele me ensinou outras coisas, falou mais. falou sobre a cegueira, as paredes; inventou fábulas, instituições; construiu castelos. dissertou sobre a variação tonal da cor de pele ao longo de um corpo meu que ele não conhece. mapeou cada incisão do tempo sobre o meu rosto como se fosse o rosto dele próprio e ergueu uma torre em cada olho meu.

ele reordenou meus órgãos e devolveu minhas asas. colocou minha nuca onde ele pudesse ouvir e me deu silêncio

( ainda guardo na memória embrulhos que deixei para abrir em agonias próximas. por enquanto carrego-os como uma cidade muda e imóvel dentro de mim: brancos, com sua letra preta frágil, um nó claro de um cordão amargo e algumas palavras vermelhas. um deles guarda um mapa definitivo, eu sei. e é dele que eu tenho mais medo. )

ele colocou um fio cruel de seu cabelo em cada gaveta minha. inventou uma teia que só ele entende e que ainda assim me prende.

uma vez ele me disse, fingindo não morrer aos poucos, que tudo que eu quisesse seria. não, ele disse que tudo que eu realmente quisesse, realmente seria – enfatizando a importância do meu grau de envolvimento com o meu próprio chão.

A construção do chão
– e ele fazia uma cara infinita –
a construção do chão teria que ser minha meta se eu desejasse, como eu dizia que desejava, tanto assim o movimento.

e ele era bom com movimentos. me contava que um caminho era percorrido mais rapidamente com tropeços que com passos firmes. tropeços exigiam pequenas corridas em sequência. bom são os tropeços, não os grandes tombos – ele dizia. contava que a direção do vento nem sempre aponta para o meu caminho exato. que alguns sinos tocam lindos em ruas mortas. e sempre que falava em sinos, principalmente em sinos que vêm com a imagem de topo de igreja, ele tentava encaixar algum deus na minha cabeça e me fazer cerrar os dedos em torno de desverdades.

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bonne nuit. eu estou bem.

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“Antes, por mundo ele entendia o mundo mais ele, agora se trata dele mais o mundo sem ele.”
( de “Palomar”, do Ítalo Calvino )

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