historinha de infância

agora me enchi de lembranças desconexas da casa e da vida na casa e quis escrever uma antes de dormir…

eu era bem pequena e imaginei que podia voar, igual a mary poppins. para mim fazia todo sentido que se pudesse voar igual a mary poppins. enquanto eu amadurecia a idéia, resolvi compartilhá-la com meu irmão – pouca coisa mais velho que eu – que disse que sim, que se eu realmente quisesse, eu poderia. eu acreditei.

era um dia de bastante sol. lembro como se fosse um domingo mas pode ter sido qualquer outra tarde vazia. escolhi o maior guarda-chuva da casa, para poder voar por mais tempo. o guarda-chuva era velho e bem preto. não combinava muito com minha idéia bonita de voar mas, entre as opções, era a que me inspirava mais certeza. naquela hora, preferi a certeza às flores enormes e rosadas de um guarda-chuva pequeno, de cabo de madeira entalhado, com detalhes dourados e tudo . pensei que, dando certo, aquele seria o próximo.

calculei todas as coisas que podia. o vento, o impulso que tomaria, a distância segura que deveria manter do muro das vizinhas: duas senhoras muito simpáticas mas bastante idosas que talvez achassem um pouco inoportuna uma aterrisagem minha ali, na casa delas, daquela maneira.

era uma casa de três andares. subi até o terceiro, onde ficava o atelier da minha avó e um telhado onde eu gostava muito de passar as tardes. do telhado, eu calculei o vôo até o quintal do segundo andar, onde meu irmão me esperava, aflito e cruel.

analisei todas as possibilidades uma última vez e, então, lembro que segurei bem firme o guarda-chuva velho nas mãos pequenas e suadas, com medo de que, se houvesse uma falha no sistema, essa falha fosse minha. e foi a última coisa de que me lembro. não aconteceu nenhum milagre. me esborrachei no chão do quintal, ainda segurando o guarda-chuva preto, agora do avesso, com a armação torta, como uma aranha morta de barriga pra cima.

meu irmão não riu. correu pra me ajudar e acho que, bem no fundo, ele acreditou que talvez fosse mesmo possível. só não quis testar.

eu não quis reavaliar o plano. talvez tenha sido uma das primeiras impossibilidades que aceitei na vida. também não quebrei nada. nada físico. saí inteira por fora mas esmigalhada por dentro.

apesar de tudo, ainda guardo desse dia a sensação de estar planejando algo que, se der certo, poderá mudar sua vida inteira.

Dev em palavras .

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