acordo confusa e arredia. são três horas da manhã. por dentro, faz escuro como faz por fora. respiro fundo, sonoramente, tentando perceber onde nasce e onde morre o esforço para adivinhar, assim, o limite entre o quarto e mim. presto atenção em tudo que adormece enquanto eu desperto. me vejo em mim como se estivesse sonhando ao contrário. talvez esteja.
a noite é fria. bate um vento gelado, pontiagudo, de um azul estranho que só vejo quando fecho os olhos. as luzes da torre dançam monótonas na porta do armário e eu decido que preciso inventar uma melodia horrível para acolhê-las. esqueço e começo de novo. esqueço e começo de novo. entra, abrindo caminho no meio do quarto, o cheiro noturno e abafado de uma cidade inteira em silêncio. balança com violência as folhas do abacateiro que minha mãe um dia plantou distraída e, como era dela que tudo nascia, ele brotou lindo e cresceu destemido até o teto e eu nunca mais consegui desapegar porque nele deposito toda a força da minha saudade. acho que é isso: amor e desespero. talvez a melodia possa ser essa. começo de novo. sinto calor se cubro os pés e frio quando os descubro. não há consenso no peito quando é madrugada, será? bate o vento, me cubro. quantas vezes, em noites enfurecidas como esta, tive que recolher o abacateiro caído, tão pouco selvagem, sobre o chão do quarto. tão indefeso. ajoelhar e juntar a terra com a palma das mãos, no escuro, afundar suas raízes, erguê-lo abraçada como em uma valsa em que ele sou eu. fecho a janela rispidamente, como se repreendesse o mundo lá fora pela falta de delicadeza com a vida da gente. me desculpo, deito de novo de olhos abertos, cansada e atenta. tateio o criado-mudo procurando um copo de água mas encontro apenas um livro que penso em ler mas são quatro horas da manhã e não estou sozinha. estou sempre sozinha. os pensamentos vão se enrolando uns nos outros, não sei se sonhei tudo isso. devagar, tento abrir os olhos mas já estão abertos. sinto o peso do meu corpo moldando a cama. penso em dormir de novo. penso em acordar. penso que, quando nascer um abacate, ele concentrará o melhor e o pior de mim. procuro contra a luz fraca que entra pela janela fechada o contorno da árvore e, com toda a firmeza possível no quase-escuro, observo-a e vejo que ela ainda dorme tranquila no vento como se não soubesse que viver é arriscado.